"Como dois e dois são quatro/Sei que a vida vale a pena/Embora o pão seja caro/E a liberdade pequena" (Ferreira Gullar)
Landro Oviedo
"Somente buscando palavras é que se encontram pensamentos" (Joseph Joubert)
Capa Meu Diário Textos Áudios E-books Fotos Perfil Livros à Venda Prêmios Livro de Visitas Contato Links
Textos

     Arnaldo Campos foi um memorável livreiro e um dos grandes escritores do RS. Sua trajetória inclui muitas lutas e muitas realizações, que levou avante sempre de forma irrepreensível, pautando-se por uma ética acima de qualquer ilação contrária. Em 2007, entramos com uma petição de reparação de danos morais e materiais pela perseguição injusta que sofreu durante o período da ditadura militar. Esse processo, por ordem do juiz federal, hoje integra um dos memoriais sobre direitos humanos, os mais belos direitos que se pode ter contra um Estado e uma elite opressores. Tivemos uma linda amizade,  regada a vinho, literatura e com muitas iniciativas culturais, até sua morte em 20.9.2012. Fomos parceiros na estruturação da Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre. A seguir, para conhecimento de todos, transcrevo a petição inicial desse processo, que fiz em parceria com meu competente colega Luís Otávio Pohlmann, hoje delegado em Santa Catarina, uma excepcional aquisição para a polícia catarinense. Boa leitura a todos.
 

Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz Federal da Vara Cível da Circunscrição Judiciária de Porto Alegre – Seção Judiciária do Estado do Rio Grande do Sul.





Autor: Arnaldo Campos da Cunha
Ré: União Federal




     Arnaldo Campos da Cunha, brasileiro, desquitado, aposentado, RG xxxxxxxxxx, CPF xxxxxxxxx, residente e domiciliado na xxxxxxxxxxx, CEP 90220-004 (doc. 1 e 2), por seus bastantes procuradores (doc. 3), infra-assinados, os quais recebem intimações e notificações na Rua dos Andradas, 1560, sala 1906, CEP 90020-010, fone (51) 4100-0040, vem propor a presente


Ação Ordinária de Reparação de Danos Materiais e Morais


     Em face da União Federal, pessoa jurídica de direito público interno, por seu representante legal, a ser citado na Rua Mostardeiro, 483, 2º andar, Bairro Rio Branco, CEP nº 90430-001, Porto Alegre/RS, pelos motivos e fundamentos que a seguir expõe:
I – DOS FATOS

     Corria o ano de 1961 e o livreiro Arnaldo Campos estava com um negócio próprio, uma livraria chamada Vitória no coração da bucólica Porto Alegre de então, na Rua dos Andradas, 1117. A livraria era um corredor que ele alugara havia pouco tempo. Depois da saga de sair do Rio de Janeiro, vir para Santo Ângelo lá pelos anos 50 e depois aportar em Porto Alegre, ele estava com um mundo pela frente, um mundo de livros, para ser mais exato. Fizera esse percurso por necessidades pessoais, pois precisava retirar sua família da área de influência do pai de bom coração, mas alcoólatra, o que acabou sendo feito, depois de muitas vicissitudes. Para se estabelecer como livreiro numa capital em que era um estranho, não fora fácil conseguir crédito, leia-se “livros”, mas um homem com um ideal e com muitas necessidades consegue muito mais do que o senso comum possa imaginar e mensurar.
     Em 1962, Arnaldo Campos convida para sócio Brutu Gegminani e ambos fazem da livraria Vitória uma referência cultural da cidade, frequentada pela intelectualidade gaúcha e com um funcionamento inovador para a época e, até mesmo, para os dias de hoje, pois ficava aberta durante 24 horas. Esse esquema se manteve durante um ano e, após, voltou a funcionar em horário dito comercial. Na livraria, podia-se encontrar, além da literatura marxista, também a boa literatura nacional e internacional, além de uma peculiar venda casada, com desconto, da Bíblia com “O capital”, de Karl Marx, que também ficavam expostos na vitrine, dando bem uma ideia da orientação pluralista dos jovens livreiros.
     Em abril de 1964, com o golpe, e sob a pecha de comunistas, Arnaldo e Brutu passam a ser perseguidos pelo novo regime. A livraria Vitória é fechada pelas forças policiais e Arnaldo Campos é preso e levado para a Companhia de Guardas, do Exército, na Vieira de Castro. Lá é interrogado, sofrendo todo tipo de humilhações, sem poder se comunicar com a família, ficando por vários dias vigiado, em sobressalto, sem poder dormir ou se alimentar direito, temeroso por sua sorte e pelo destino de sua família, sendo que tinha já a esposa Iara, os filhos Poti e Bartira, que dele dependiam afetiva e economicamente, além de sua mãe, já idosa, sua irmã e irmão. A desgraça se abatia sobre seu clã familiar.
     Preso inicialmente na Companhia de Guardas, Arnaldo Campos é posteriormente levado para a DOPS, fichado criminalmente (doc. 9 e 10) e depois para a SESME (Serviço Social de Menores), antecessora da FEBEM e da FASE. Em todos esses lugares, sofre humilhações, tortura psicológica, ameaça de tortura física se não colaborar, imposição de ficar de pé por horas a fio, como nas dependências do Exército, piadas e gracejos. Uma piada entreouvida ficou em sua memória, quando um policial da DOPS passa e comenta com outro:
     “O que essa gracinha está fazendo aqui?”
     Enquanto é atingido em seu patrimônio moral, Arnaldo Campos também sofre dilapidação de seu patrimônio comercial. Veículos de carga do Exército, em várias viagens, numa operação em conluio com os agentes da DOPS, no dia 26 de junho de 1964, levam a maioria do acervo da livraria, então com 10.000 livros, custando cerca de R$ 20,00 cada um, que é a média de um livro no mercado nos dias de hoje (ver doc. 7 e 15 sobre a apreensão). Aos livreiros não entregam qualquer auto de apreensão, pois uma ditadura não precisa, na visão de seus pequenos bonapartes, justificar seus atos. Todavia, na denúncia feita pelo Senhor Antônio de Lima, procurador designado, perante a 1ª. Auditoria da 3ª. Região Militar, ele relaciona nominalmente uma série de obras apreendidas (doc. 15).
     Mas, mais do que se apropriar do patrimônio material da livraria, os agentes da repressão, num arroubo de vencedores, obrigam os proprietários a mudar o nome comercial, numa interferência própria dos inatingíveis, dos poderosos de plantão. Ao levar o recado para Arnaldo Campos, o inspetor que lhe comunicou da imperiosidade da mudança afirmou: “Olha, os escalões lá de cima resolveram que vocês não podem ficar com esse nome, Vitória, pois os vencedores somos nós. Então tratem de mudar”. Mais não lhe nem foi dito nem Arnaldo perguntou, porque o tempo não era propício para perguntas. Estava mais para longos silêncios. E no ano de 1966, num registro que atravessa décadas, vemos uma nota fiscal da livraria já com outro nome, Coletânea, cumprindo o desejo de algum novo chefete local encastelado no poder militar (doc. 11).
     A vida de Arnaldo Campos em 1964 se fez aos trancos e barrancos. Solto, era constantemente vigiado pelos arapongas do regime. Seguidamente, era preso novamente e levado a repartições policiais para responder interrogatório, ver álbuns de fotografias de suspeitos, dar satisfações sobre sua vida, entre outras coisas. A seguir, os fatos de prisão e apreensão de livros lhe resultaram num inquérito policial que, remetido à Justiça Militar, lhe renderia um processo, entre 1966 e 1971, no qual estava incurso nos artigos 2º., 9º., 10º. e 11º. da Lei 1.802/53, Lei de Segurança Nacional (doc. 12). Durante sete anos de sua vida, primeiro com as prisões e perseguições, depois com um processo na Justiça Militar da União, sua vida foi marcada pela ameaça velada ou explícita à sua integridade física, à privacidade, à sua paz familiar, ao seu trabalho, fonte de sustento, à sua intimidade e à sua dignidade como cidadão. Se hoje o fato de um cidadão responder a um processo penal de proporções menores, como uma injúria, por exemplo, já o aflige a ponto de turbar-lhe a paz, que dirá responder a um processo perante um regime munido de todas as armas, sejam as literais, sejam as institucionais.
     Em maio de 1970, a 1ª. Auditoria da 3ª. Circunscrição Militar receberia a denúncia do Ministério Público Militar contra Arnaldo Campos, por atividades de subversão, com o mandado de citação tendo sido expedido em 20.5.1970 (doc. 13). A denúncia (doc. 14, 15 e 16) vale por uma peça de teatro do absurdo e o denunciante vê em livros e na livraria um centro irradiador de subversão para “sovietizar” o país. Uma simples leitura desta peça remete a um tempo obscurso em que idéias e livros eram tão ou mais perigosos que no período da Inquisição. Não obstante a extensão, vale a pena transcrever alguns parágrafos:
     Os denunciados supra qualificados, sendo os dois primeiros sócios [Arnaldo e Brutu] proprietários da ex-livraria Vitória, hoje denominada “Coletânea”, (...) após o movimento de 31 de março, até meados de junho de 1.964, passaram a distribuir, ora em caráter clandestino, ora, em alguns casos, ostensivo, farta literatura de cunho eminentemente subversivo, tanto nacional quanto estrangeira, sendo que esta provinha diretamente de editora cubana, estabelecida em Havana, e da China, material esse representado por revistas, folhetos e livros, ora expondo-os à venda, tudo quanto conforme relata o auto de apreensão de fls. 7 e 8.
     Tão bem entrosados estavam os ora denunciados entre si, na difusão dêsse material de cunho nitidamente subversivo, que, valendo-se da situação de anarquia criada nos tumultuosos anos de 1.962 e 1.963, não apenas se dedicaram a essa tarefa, como, ainda, transformaram a ex-Livraria Vitória em autêntica célula viva do extinto Partido Comunista, proporcionando o funcionamento clandestino deste, tornando-se eficientes colaboradores na angariação de fundos, conforme espelham os documentos de fls. 30 e 31.
A atuação do primeiro denunciado [Arnaldo] desponta com mais evidência, consoante bem explicitam os documentos de fls. 34 a 72, num trabalho bem concatenado com os demais, pois, adeptos do Partido Comunista, desenvolvem sua atividade, no sentido de sovietizar o País, em obediência à orientação estrangeira, mormente cubana e chinesa.
     Desse modo, submetido o material apreendido, e descrito no auto de apreensão de fls. 7 e 8, a exame, conclusivo, foi o laudo de fls. 79, no sentido de grande parte do mesmo, se constituir em veículo destinado à subversão da ordem política e social, ora incitando à luta de classes, ora à animosidade entre estas e contra as Fôrças Armadas, como, por exemplo, “Os gorilas, o povo e a reforma agrária”, “GUERRA DE GUERRILHAS”, “PEQUENA CARTILHA DO SOCIALISMO REVOLUCIONÁRIO”, “REVOLUÇÃO E CONTRA-REVOLUÇÃO NO BRASIL”, “A MISÉRIA É NOSSA”, “LOS SINDICATOS SOVIETICOS DIRIGEN LOS SEGUROS SOCIALES”, etc.
     Da forma como agiram os denunciados, tentaram subverter a ordem política e social, com a finalidade de estabelecer ditadura de classe, com o auxílio provindo do estrangeiro, pela farta literatura deste recebida, reorganizaram o Partido Comunista e, pelos jornais, revistas e livros distribuídos e vendidos, fizeram propaganda de molde a provocar a animosidade contra as Fôrças Armadas e das classes sociais contra estas e entre si. ]
     Decerto essa revolução seria feita pelos parcos clientes de livros, que sempre foram espécies à beira da extinção no Brasil.
     Em março de 1971 o Conselho Permanente de Justiça do Exército absolve Arnaldo Campos por falta de provas, sendo essa sentença confirmada pelo Superior Tribunal Militar em 26.7.71 (doc. 12). Nesse momento, completavam-se sete anos da luta de um homem contra o arbítrio de um Estado que investia contra cidadãos como se eles fossem inimigos da Pátria. Arnaldo Campos, apesar de tudo, pessoalmente, podia se dizer um sobrevivente diante de um regime que nunca hesitaria em golpear até a morte seus oponentes, como já o fizera com o tenente-coronel da aeronáutica Alpheu de Alcântara Monteiro, assassinado a sangue-frio, pelas costas, em Canoas, na Base Aérea, ao se opor ao Golpe em 1964, com o deputado Rubens Paiva em janeiro de 1971 e ainda o faria com o dirigente estudantil Honestino Guimarães em 1973 e com o jornalista Wladimir Herzog em 1975. Como já o fizera e ainda faria com milhares de brasileiros, perseguindo, assassinando, enlutando famílias e abatendo implacavelmente os sonhos generosos de toda uma geração de brasileiros.
     A vida de Arnaldo Campos foi profundamente vincada pelos desmandos e perseguições do regime militar e do Estado. Sua esposa de então, Iara Marques da Silveira, em 23 de outubro de 2000, escreveu um breve relato sobre a vida em comum do casal, evidenciando as atribulações por que passou:
     Sobre o relato das prisões do senhor Arnaldo Campos da Cunha, informo que fomos casados 17 anos e temos dois filhos que no ano de 1964, tinham 7 e 4 anos. São verdadeiras as informações das prisões e tenho muito bem gravadas na memória aqueles tristes anos, entre 1964 e 1970, vividos em meio ao pavor, à insegurança, de manhã à noite, e aos sobressaltos das madrugadas.
     Inúmeras prisões aconteceram, a primeira delas, lembro-me bem, no último dia de julho de 64. O Arnaldo foi recolhido à Companhia de Guardas do Exército e posteriormente para a DOPS, onde passou vários dias antes de ser levado para a SESME.
     Recordo-me da manhã seguinte, quando eu e as crianças acordamos e não encontramos o Arnaldo em casa. Ele e seus colegas de trabalho na livraria haviam sido presos quando, aí pelas dez horas da noite, fechavam a loja da livraria e ninguém apareceu em nossa casa (morávamos na Corte Real) para nos informar do ocorrido. No dia seguinte, tomados de pavor, eu e meus filhos, depois de informados do ocorrido, ficamos imaginando o que estaria acontecendo e, naturalmente, não supomos que fosse algo de bom.
     A primeira prisão foi só o início de outras que se seguiram, tão apavorantes quanto a primeira, ou até pior do que aquela, prisões em que o Arnaldo era submetido a prolongados interrogatórios, durante dias.
     A partir de 64 passamos a viver o tormento da expectativa dos fins de semana, que era quando o sadismo policialesco da DOPS escolhia para arrastar o Arnaldo a novos interrogatórios. Voltaria? Eu me perguntava...
     Quando o Arnaldo retornava à casa, vinha com dores de cabeça, olhos injetados e inchaços pelo corpo. Passava dias sem aceitar alimentação, terrivelmente deprimido, com insônia, pesadelos que o faziam pular da cama, aos gritos, na madrugada.” (Lei Estadual 11.042, processo 6834-1200/98-0, Comissão Especial)
     Arnaldo Campos é hoje um homem de 75 anos. As agruras por que passou, a defesa das suas ideias, sua obstinação pela melhoria da sociedade em que vivemos o tornaram um ser humano raro, comprometido com seu tempo. Sem rancor, sem mágoas, com a certeza do dever cumprido, tranquilo por haver vivido em consonância com os imperativos da sua consciência, com seus princípios éticos, ele vive seus dias na cidade que o acolheu, com seus amigos e familiares. Em sua folha de serviços, várias obras literárias (“O degrau”, “Réquiem para um burocrata”, “A boa guerra”, “A ceia do Diabo”, “Breve história do livro”, etc.), a fundação da Secretaria Municipal da Cultura como coordenador do Livro e Literatura em 1988, a presidência do Instituto Estadual do Livro, a presidência da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, as extintas livrarias Vitória (Coletânea) e Porto do Livro, uma coluna intitulada de “Biblioteca do Tempo”, de longa duração no jornal Zero Hora nos anos 90, entre outras atividades e realizações. No livro “Um livreiro de todas as letras”, numa entrevista para o jornalista Renato Mendonça (Edunisc, 2006, p. 90), ele nos dá a medida do hiato que foi sua vida ao registrar:
     Depois que eu me livrei das prisões, sendo absolvido pela Justiça Militar em 1971, recomecei a escrever, mas, enquanto estava debaixo do tacão, não conseguia criar.
     Para Arnaldo Campos, foi possível retomar o ofício de escrever. Mas quantos livros deixaram de ser escritos, quantos amigos desapareceram, quantos abraços não foram dados em seus filhos e em sua esposa, quantos clientes foram perdidos pelas pressões, quantos livros deixaram de ser vendidos, quantos empreendimentos foram abortados, quantos caminhos se fecharam nesse período cruciante da sua vida e da vida nacional?
     Por certo que o regime militar acabou por condicionar sua vida, incluindo nela ingredientes que só o terror político é capaz de impor aos que ousam discordar de seu autoritarismo. Não assim, ela teria sido mais livre, mais privada, mais ao sabor de fatos aleatórios e circunstanciais, sem as interferências danosas que tanto podem torturar uma alma livre. Família, trabalho, amigos, ideais, saúde, paz, liberdade conformam um conjunto de bens imateriais que a ninguém é dado, em qualquer tempo, o direito de apequenar ou destruir. Muito menos ao Estado, que na concepção clássica de Rosseau, nasce como instituição para proteger os cidadãos da barbárie. Se do Estado emana a barbárie, algo está errado e isso deverá ser reparado algum dia.

II – DO DIREITO


1 – Dos Fundamentos Legais à Reparação

     Trata-se de ação, eminente julgador, que visa à reparação de danos materiais e morais sofridos pelo autor durante o regime militar. Estes danos foram descritos acima. Agora, passa-se a tratar dos fundamentos jurídicos, bem como do nexo causal entre os danos existentes e a demandada.

     É um direito constitucional que sustenta esta pretensão do autor, já que o inciso V do artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil estabelece que é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem. De salientar ainda, a proteção prevista no inciso X do mesmo artigo entre outros no rol exemplificativo do artigo 5º, dispositivos constitucionais baseados na Declaração Universal dos Direitos do Homem.

     A Lei Fundamental brasileira, em seu artigo 1º, ao consagrar os fundamentos do Estado Democrático brasileiro, define em seu inciso III que a dignidade da pessoa humana é um de seus pilares mestres. O fundamento da Dignidade da Pessoa Humana vai ao encontro do preâmbulo da Declaração Universal, a qual reza que o reconhecimento da dignidade inerente a dos os membros da família humana e seus direitos iguais e alienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo.

     Ademais, é mister ressaltar que o Brasil se encontra inserido num instrumento de grande importância na proteção dos direitos humanos, qual seja, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, assinada em São José da Costa Rica (1969), cujo texto entrou em vigor em 1978.

     Dentro do universo dos direitos assegurados por essa Convenção, destacam-se os direitos à personalidade jurídica, o direito à vida, o direito a não ser submetido à escravidão, o direito à liberdade, o direito a um julgamento justo, o direito à compensação em caso de erro do judiciário, o direito à privacidade, o direito à liberdade de consciência e religião, o direito à liberdade de associação, o direito ao nome e à nacionalidade, o direito à liberdade de movimento e de resistência, o direito de participar do governo, o direito à igualdade perante a lei e o direito à proteção judicial, etc.

     O direito à reparação civil é acolhido pela jurisprudência. A título exemplificativo, colhe-se o entendimento do Egrégio Tribunal Regional Federal da 4ª Região, nos autos da Apelação Cível nº 2001.04.01.034962-9 (DJU – 29/11/2006) o qual assim decidiu, cuja transcrição literal faz-se necessária, porquanto elucidativa, in verbis:

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. CIVIL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO. PERSEGUIDO POLÍTICO PELO REGIME MILITAR. DANOS MORAIS. COMPROVAÇÃO DO NEXO DE CAUSALIDADE. INDENIZAÇÃO.
1. A responsabilidade objetiva independe da comprovação de culpa ou dolo, ou seja, basta estar configurada a existência do dano, da ação e do nexo de causalidade entre ambos (art. 37, §6º, da CF/88).
2. Demonstrado o nexo causal entre o fato lesivo imputável à Administração e o dano, exsurge para o ente público o dever de indenizar o particular, mediante o restabelecimento do patrimônio lesado por meio de uma compensação pecuniária compatível com o prejuízo.
3. A prova dos autos demonstra que a ré é civilmente responsável pela prisão ilegítima do autor, motivada tão somente por razões políticas, a qual acarretou-lhe um grave abalo moral em face das incontestáveis repercussões negativas do fato.

4. Indenização por danos morais fixada em R$ 100.000,00 (cem mil reais), segundo a situação econômica do ofensor, prudente arbítrio e critérios viabilizados pelo próprio sistema jurídico, que afastam a subjetividade, dentro dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade à ofensa e ao dano a ser reparado, porque a mesma detém dupla função, qual seja: compensar o dano sofrido e punir o réu.
5. Atualização monetária pelo INPC, a partir do ajuizamento.
6. Juros moratórios de 0,5% ao mês (art. 1.062, Lei nº 3.071/1916), a partir da citação.
7. Sucumbência mantida, fixada na esteira dos precedentes da Turma.
8. Prequestionamento quanto à legislação invocada estabelecido pelas razões de decidir.
9. Apelação do autor provida. Apelação da União improvida e remessa oficial parcialmente provida.


     Em suma, seja no plano constitucional, ou infraconstitucional, nacional ou internacional, bem como pelo entendimento de nossos tribunais, o direito do postulante encontra-se amplamente protegido, fazendo jus à reparação dos danos sofridos, como imperativo de justiça.

2 – Da Responsabilidade da União Federal


     Cuida-se da aplicação do artigo 37, § 6º, da Constituição da República Federativa do Brasil, segundo o qual as pessoas jurídicas de direito público responderão pelos danos que seus agentes causarem a terceiros. É a denominada teoria do risco administrativo, o qual faz surgir a obrigação de indenizar o dano do só ato lesivo e injusto causado à vítima pela Administração. 

     A responsabilidade objetiva independe da comprovação de culpa ou dolo por parte do agente público, basta estar comprovado a existência do dano, da ação ou omissão do poder público e do nexo de causalidade entre ambos.
Os danos foram comprovados na síntese dos fatos ocorridos durante a ditadura militar, os quais são do conhecimento de todos que foram extremamente injustos, por si só capazes de levar à reparação que ora se busca.

     O Egrégio Tribunal Regional Federal da 4ª região, nos autos da Apelação Cível nº 2000.04.01.042715-6, assim destacou acerca do nexo causal, a saber:
“2. Provado que o autor foi preso arbitrariamente, sofrendo torturas e privado do exercício da profissão à época do regime militar, existe o nexo causal para que sejam devidas as indenizações morais e materiais, estas últimas de caráter alimentar.”

     Portanto, há nexo causal entre os fatos narrados e a União Federal, devendo esta reparar os danos sofridos pelo autor, sejam os materiais, como também os morais, ambos amplamente protegidos pelo ordenamento jurídico brasileiro.


3 – Da Imprescritibilidade

     Finalmente, cumpre salientar que em se tratando de proteção de violação de direitos fundamentais, protegidos pela Declaração Universal dos Direitos do Homem e pela Constituição da República Federativa do Brasil, não se aplica a disposição restrita do Decreto nº 20.910/32.

     Este entendimento foi acolhido pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça, no Resp. nº 449.000/PE, com publicação no Diário Oficial da União no dia 30/06/2003, pois este tipo de dano atinge o mais consagrado direito da cidadania, qual seja, o respeito pelo Estado à vida e de respeito à dignidade humana, portanto, a imprescritibilidade deve ser a regra quando se busca indenização por danos morais consequentes da sua prática.
     Assim, a exigibilidade a qualquer tempo dos consectários às violações dos direitos humanos decorre do princípio de que o reconhecimento da dignidade humana é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz, e a tortura, nas palavras do Ministro do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, é o mais expressivo atentado à dignidade da pessoa humana, valor erigido como um dos fundamentos do Brasil.


III – Dos pedidos


a) a citação da União Federal para, querendo, responder à presente demanda;

b) a condenação da demandada à reparação dos danos materiais no valor de R$ 150.000,00, sendo 100.000,00 (cem mil reais) correspondentes à metade do acervo de livros, 5.000 exemplares, ao custo médio de R$ 20,00 (vinte reais) cada um, e R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais) correspondente a reparação pela perda da marca comercial Vitória, que também constituía patrimônio do autor e de seu empreendimento;

c) a condenação da demandada à reparação dos danos morais sofridos no valor de R$ 150.000,00 (cento e cinqüenta mil reais);

d) seja concedido ao autor o benefício da Assistência Judiciária Gratuita, uma vez que é pessoa de poucos rendimentos, conforme documentos em anexo (doc. 4 e 5), cujo valor é sua única fonte de renda;

e) a tramitação preferencial, nos termos do artigo 71 da Lei nº 10.741/2003;

f) a produção de provas, segundo os meios em direito admitidas;

g) a condenação da demandada ao ônus da sucumbência e a honorários advocatícios, estes a serem fixados no percentual de 20% sobre o valor da causa.

h) a intimação do digníssimo representante do Ministério Público Federal, a fim de manifestar-se acerca da presente demanda.


Valor da Causa: R$ 300.000,00


Nestes termos, pede deferimento.



Porto Alegre, 20 de abril de 2007.



Landromar Oviedo Ribeiro (Landro Oviedo)
OAB/RS 62.702



Luís Otávio Pohlmann
OAB/RS 63.616


1
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 27 ed. São Paulo: Malheiros, 2002, pg. 619.
2 Ministro Luiz Fux. Resp. nº 529.804.

Landro Oviedo e Luís Otávio Pohlmann
Enviado por Landro Oviedo em 14/12/2018
Alterado em 30/03/2024
Comentários
Eventuais recebimentos