O poema "Martín Fierro", de José Hernández, é um clássico universal. A história do gaúcho perseguido, despojado de seus bens e de sua felicidade doméstica, com sua família dizimada pelo arbítrio, obrigado a servir como soldado nas lutas de fronteira, comoveu gerações de leitores, desde as classes mais humildes, que se viram retratadas na obra, até o público leitor mais culto, admirador das suas virtudes estéticas. A primeira parte do livro, a "ida", é de 1872; a segunda, a "volta", de 1879.
Martín Fierro nutre uma aversão crônica a dois tipos do mundo argentino do século XIX, o gringo e o índio. Aquele é o imigrante, elemento estranho no mundo pastoril. Este, o indígena, é o elemento a ser vencido pelos gaúchos recrutados e temido pelo seu barbarismo. Há passagens em que Martín Fierro é insensível à sorte dos gringos e outras na quais trava luta de vida e morte com os índios. Mas e os negros, que medida lhes dá Fierro?
Uma possível resposta está no canto VII da "ida". Martín Fierro, sem sofrer qualquer ofensa ou ameaça, provoca um casal de negros que quer apenas se divertir no fandango, arranjando um pretexto para assassinar o varão. Isso não encontra paralelo nem na natureza, na qual as feras lutam apenas por sua sobrevivência, movidas pelo instinto. A moralidade às avessas de Fierro, dirigindo palavras de baixo calão à negra, praticamente obriga o negro a defender sua honra e a de sua companheira. Assim, nem mesmo a rudeza do personagem lhe pode servir de escusas, posto que fica por demais evidenciada sua psicologia de opressor, indiferente ao destino de outros oprimidos e deserdados como ele.
Uma mentalidade é sempre produto do meio. Não podemos julgar valores morais de épocas passadas e distintas pelas nossas acepções atuais. O preconceito contra o negro era corrente. Confirma-o Martín Fierro, no canto XXXI, da "volta", quando diz que nunca irá se descuidar com o "homem de humilde cor" e que este "sempre será mau de entranha". Todavia, do preconceito ao assassinato por motivo fútil há um pampa imenso.
Para Lugones, "Martín Fierro" é um poema épico; para Borges, um relato individual. É possível que ele seja a síntese que permite unir opressor e oprimido num único personagem ambíguo de uma obra magistral.