"Como dois e dois são quatro/Sei que a vida vale a pena/Embora o pão seja caro/E a liberdade pequena" (Ferreira Gullar)
Landro Oviedo
"Somente buscando palavras é que se encontram pensamentos" (Joseph Joubert)
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Textos
RAZÃO E COMPAIXÃO NA OBRA DE ALCIDES MAYA
 

Uma polêmica memorável
     Por certo, a polêmica sociológica e literária entre Rubens de Barcellos e Moysés Vellinho sobre a obra de Alcides Maya (foto acima), estampada nas páginas do jornal Correio do Povo, no simétrico ano de 1925, mereceria uma tese alentada por parte dos nossos estudiosos. Conceitos literários, linguísticos, sociológicos, históricos, políticos, tudo está ali, na superfície ou subjacente, constituindo o arcabouço de um debate apaixonado e apaixonante, travado por dois grandes representantes da vida intelectual da província nessa época.
    Não é tarefa fácil, se possível, projetar-se no centro desse debate e muito menos tomar partido nele, ainda mais considerando que a interpretação dos analistas integra a relação anímica com a obra. Para efeito deste artigo, sem a pretensão e condições de abarcar a totalidade da polêmica, considero, a par com Rubens de Barcellos, que a obra de saudosismo e invocação do passado levada a efeito por Alcides Maya foi um imperativo da realidade. Já Moysés Vellinho instava que as mudanças sociais e tecnológicas constituíam cenário de aprimoramento de uma vocação do homem rio-grandense para o progresso, vocação tantas vezes interrompida pelas escaramuças de fronteira.
Temos, assim, de um lado, o gaúcho de Alcides Maya e Rubens de Barcellos, um homem que sofre os efeitos de um tempo veloz de mudanças  ainda mais velozes, originando um tipo que perde seu tradicional perfil. De outro, com Moysés Vellinho, um gaúcho que, mais do que perde, acrescenta traços, evoluindo e fazendo evoluir uma sociedade em transformação.
O poder se desloca
     Essa dicotomia encontra paralelo na história. Até a República, o domínio político esteve sob a égide dos partidários de Gaspar Silveira Martins, precursores dos federalistas e representantes políticos da oligarquia das estâncias. Após a República, entram em cena e no poder os liderados de Júlio de Castilhos, republicanos centralistas, sustentando-se em uma incipiente classe média.
     Esse câmbio de poder é crucial para entender o saudosismo de Alcides Maya. Sem o regime dos estancieiros, a estância acaba cada vez mais reduzida à sua função estritamente econômica. Aos poucos, com reações parciais, reprimidas duramente por Castilho ou por Borges de Medeiros, essa velha instituição patriarcal começa progressivamente a esvaziar-se. E com ela os homens que a habitam.
     O Estado das Estâncias teve as suas funções arrebatadas pelo Estado castilhista, que se organizou de modo a realizar seu programa e preservar-se no poder.
O gaúcho em desuso
     Esse deslocamento na esfera do poder desarticulou todo um exército antes forjado para a guerra e que, a intervalos, tinha os seus integrantes a exercer o ofício de peão campeiro. Toda uma têmpera espiritual impregnada de belicosidade, uma destreza marcial e espartana, uma disciplina de exército irregular caíram em desuso e receberam um aviso prévio, sem prévio aviso.
     Em "Ruínas Vivas" temos dois representantes distintos de cada uma das fases de domínio político. Chico Santos é o representante de uma época gloriosa do "regime dos estancieiros", quando as guerras, a vida, a morte, as vitórias e as derrotas justificavam a existência. Miguelito é o contraponto: sua época é a de desaproveitamento de uma vocação guerreira. Ele mesmo é uma peça sobressalente de uma engrenagem obsoleta.
Por ironia do destino, se válida a especulação, talvez um elo significativo entre Chico Santos e Miguelito seja o próprio pai de Miguelito, filho do Coronel Saraiva, sedutor da desgraçada filha de Chico Santos, um representante desses tantos rapazes que estudavam em São Paulo e que depois tanto contribuíram para as mudanças sociais que advieram na garupa da República. E que acabaram por alterar o mundo que foi de Chico Santos e que já não pode mais ser de Miguelito. É evidente que o assassinato do pai de Miguelito frustra um retorno vitorioso aos pagos, mas sua trajetória de emigrante não deixa de indicar um caminho comum daqueles que haveriam de depois dirigir os destinos da Província.
Sem futuro, o olhar no passado 
     Mas e o saudosismo, tantas vezes constatado e apontado na obra de Alcides Maya, onde entra nessa história? E o que ele significa?
     Não se deve negar que, para além das suas constatações sociológicas, há em Alcides Maya uma predisposição de reverenciar o passado. Sobre o fundo nostálgico de sua obra vê o escritor e professor Sílvio Júlio uma evocação de engajamento, na qual o escritor "empresta aos objetos e pessoas do passado o dinamismo de sua alma". Mas deve-se ter em conta que o elenco dos seus motivos literários é sempre fornecido por um mundo exterior, nítido, material, natural, observável.
     Do imenso painel de deserdados que transitam na obra de Alcides Maya, podemos fazer um corte e, aleatoriamente, retirar dela três personagens: Miguelito, o carreteiro Moisés, do conto "Para o Sul", e Chico Pedro, de "Por Vingança". São três gaúchos em retirada, sem terra, sem guerras, quase já sem ofícios.
     Cada um desses gaúchos, entregues à própria sorte, já não é mais o "dono dos seus rumos, carregando a cama no lombo do cavalo", com a facilidade de conseguir serviço e que "tinha ao alcance de um tiro de laço o alimento, a fartura e, por conseguinte, a altivez ou insolência que o ócio lhe proporcionava", como bem nos diz Augusto Meyer. E será que essa altivez, essa insolência, esse direito ao ócio não advinham de uma relativa dependência e condescendência do caudilho com os integrantes do seu exército particular? Afinal, no mercado das batalhas, um peão lutador sempre foi uma mercadoria em alta.
     Essa realidade desalentadora para o gaúcho vem vincada pelo novo Estado, que, com seu poder de fogo e mão de ferro, reduz o permanente estado de guerra, gestado na Província desde sua origem, a revoltas intermitentes, descontínuas e cada vez mais esparsas, até o fechamento do ciclo dicotômico, em 1923. É precisamente nesta distensão que o gaúcho dos campos, ex-miliciano dos coronéis, fica a deus-dará, vendo esvair sua vocação guerreira, sendo expulso dos campos que conquistou à pata de cavalo e que agora prescindem de sua defesa. Sua visão de mundo turva-se diante de estranhas tecnologias que sua alma rude jamais intuiu.
     Nesse momento, o saudosismo é progressista, revolucionário até! Mais do que bradar contra o avanço irrefreável do progresso, busca preservar da liquidação física o homem que traçou a fisionomia do Rio Grande do Sul e que agora se vê acossado pela miséria, pelo exílio, pela degradação que o meio lhe provoca.
E Miguelito, na sua consciência de bárbaro, em certo momento reflete sobre a questão social do homem do campo: "Belo fim, sem dúvida, fim de todos os gaúchos pobres, cujos filhos tinham como única herança o trabalho forçado, cujas filhas estavam sempre sob a ameaça da impune devassidão dos opulentos". O aprendizado de Miguelito é um dos pontos altos da feição naturalista do romance.
     É forçoso reconhecer que o drama de sobrevivência do gaúcho exilado chega a ser um retrocesso em relação ao próprio modo de produção escravista. Nele, o dono da terra tinha de, pelo menos, sustentar a reposição da força de trabalho de seu escravo. Aqui, o que tivemos em meio ao capitalismo emergente foi um total descompromisso do estancieiro com seu peão. Bastou que este perdesse sua serventia no palco da guerra para perder também sua autoestima e sua ração diária.
Dessa forma, como não será saudosista Miguelito, nosso bronco analista de costumes? E Moisés, o carreteiro, que está perdendo seu oficio? E Chico Pedro, que perde seu pedaço de terra? Não se pode pedir que saúdem os novos tempos, pois isso seria acatar o ritual da imolação.
Natural e naturalista
     E Alcides Maya, que como criador está por trás de tudo, o que o leva em sua poderosa ficção, a dar vida a esses seres que vivem em clima de epitáfio? E por que o naturalista Alcides se deixou levar por um romantismo tão forte?
     A professora Léa Masina, no texto do fascículo dedicado a Alcides Maya, publicação do Instituto Estadual do Livro, afirma que "a história individual de Miguelito, sua revolta e a expulsão da estância, mitigam a denúncia do fato coletivo" (grifo meu). Quer me parecer, no entanto, que é exatamente na trajetória individual de Miguelito, na sua consciência subitamente solidária com outros deserdados iguais a ele, que a sorte coletiva encontra sua melhor e real expressão.
     Na minha opinião, Alcides Maya, sendo ou não um escritor naturalista, jamais poderia não equilibrar esteticamente o individual e o coletivo, sob pena de não ser nem naturalista e muito menos natural. Qualquer destaque em excesso ao meio pode matar uma personagem, qualquer enfoque único na personagem pode deslocá-la de seu meio.
     Sendo assim, é um equilíbrio perfeito entre personagem e meio o que vamos encontrar, por exemplo, em "Ruínas Vivas". Há o contexto em que ocorre a degradação das condições de vida do gaúcho, há o aprendizado de Miguelito, o dissecamento da sua psicologia de homem rude, seu despreparo diante da realidade avassaladora, o que inspira a piedosa simpatia do autor.
Linguagem e solidão
     Quanto à linguagem de Alcides Maya, há uma intensa polêmica, com posições que estão longe de expressar unanimidade.
     De uma parte, temos nada mais e nada menos do que os mestres Moysés Vellinho e Guilhermino César. O primeiro afirma que na obra de Alcides Maya há mais cultura que instinto. Guilhermino César considera-o mais um estilista do que um romancista.
     Na contraposição, Alcides Maya recebeu a admiração estilística de escritores do porte de Sílvio Júlio e de Manoelito de Ornellas. Assim se expressou este último: "Alcides Maya era um escritor original. Sobrava-lhe o talento. Por vezes, a sua palavra comunicava-nos a impressão bárbara de um incêndio ou nos envolvia, de improviso, no íris de uma fonte colorida".
     Equilibrando-se entre esses dois polos, o crítico João Pinto da Silva desanca "Ruínas Vivas" e lança loas ao livro de contos "Tapera". Vale a pena ouvi-lo: "As 'Ruínas Vivas', porém, não viverão vida longa e intensa, ao ar livre da popularidade, no pampa. Além do mais, o estilo do autor poucas vezes consegue adaptar-se bem ao tema; é castigado, rebuscado, quase precioso, rutilo demais, artístico demais, se quiserem, para as faculdades rudimentares de percepção da nossa gente das fazendas (...). Dessa impropriedade de estilo, felizmente, não participa, senão em grau mínimo, a coleção de contos do sr. Alcides Maya". Coincidência ou não, a profecia do autor de "História literária do Rio Grande do Sul" se cumpriu: os livros de contos de Alcides Maya já foram reeditados e "Ruínas Vivas" permanece em primeira edição, quase inacessível.
     Esboçada uma vaga ideia da opinião de alguns mestres da nossa crítica literária sobre o estilo de Alcides Maya, permito-me dizer que qualquer livro da "trilogia regionalista de Alcides Maya" pode ser lido com entusiasmo (a expressão entre aspas é de Carlos Reverbel, legenda viva da nossa literatura). Ninguém que já tenha contemplado um pôr do sol no campo ou chimarreado em um galpão deixará de sentir cada frase como sua. E ninguém que nunca tenha feito isso, mas que compreenda minimamente seu idioma, deixará de de entendê-lo.
     Não obstante, pesam sobre a obra de Alcides Maya frequentes juízos literários que acusam um rebuscamento excessivo, o que explicaria o fato de que ele seja um autor "mais citado do que lido", como atestou Gulhermino César. Mesmo admitindo-se a premissa da exuberância de estilo, não estaria na linguagem o impeditivo maior para que sua obra rompesse a aura de solidão que a envolve e a afasta do reconhecimento do público. Seriam necessárias mais edições de seus livros, que, no relativo esquecimento a que foram enviados, já começam a ganhar as adesões ilustres de Darcy Azambuja, Roque Callage, Vieira Pires e tantos outros, esquecidos na memória de um povo por eles eternizado nas páginas que escreveram.
     Mas, faça-se justiça, o esquecimento de Alcides Maya é apenas relativo porque, graças aos esforços de Carlos Reverbel, Carlos Jorge Appel, Juremir Machado da Silva e tantos outros, recentemente editou-se "Alma Bárbara". Com isso, sua obra foi novamente lembrada e empreendeu uma curva ascendente. E tomara que continue assim, a riscar os céus da sua gente.
O passado lança seus raios 
     No apanhado de cenas únicas do pampa, na descrição pungente de flagrantes da natureza bravia, na humanização das paisagens, na denúncia social, em tudo avulta a obra de Alcides Maya. É uma ficção atual, que nos retrata e ilumina no que fomos e no que continuamos, de certo modo, a ser. E é exatamente o universo evocativo de sua ficção que nos remete a um imaginário comum no qual pontificam o drama de Miguelito, a sabedoria serena de Dom Segundo Sombra ou a índole contemplativa do velho Blau. Alcides Maya registrou magistralmente momentos imperecíveis da trajetória épica dos homens que agaucharam esta parte da América.




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 O autor

Alcides Maya (1877-1944) - Jornalista, crítico literário, deputado federal, membro da Academia Brasileira de Letras, Alcides Maya exerceu grande influência nos meios literários e culturais do RS e do Brasil, não obstante sua obra ter tido e permanecer com escassa circulação.
Alcides Maya teve intensa atividade jornalística e foi nos jornais que publicou grande parte de sua obra (muitos destes textos precisam ser localizados).
Dois textos famosos de Alcides Maya são o libelo "O Rio Grande Independente" (1898), no qual combate o separatismo, e Machado de Assis (1912), análise da obra do escritor, um ensaio que lhe rendeu fama e credibilidade no meio intelectual.
Mas a principal parte da obra de Alcides Maya é sua trilogia regionalista: "Ruínas Vivas" (romance, 1910), "Tapera" (contos, 1911) e "Alma Bárbara" (contos, 1922). Nesses livros, ele capta as alterações do ambiente pastoril na campanha do RS, com novas tecnologias e mudanças políticas que levam à alteração do perfil tradicional do gaúcho. Seus personagens, como Miguelito, de "Ruínas Vivas", são vítimas impotentes de uma estrutura que lhes desagrega o meio natural e a identidade, o que os impele a um saudosismo evocativo de tempos mais felizes.
A linguagem de Alcides Maya é extremamente trabalhada e situa-se dentro das regras correntes do idioma. Contudo, embora essa filiação, sua literatura é feita dos mesmos temas que a literatura regionalista do Uruguai e da Argentina. Suas paisagens e flagrantes do pampa são retratados cromaticamente, tensionando as possibilidades descritivas das palavras.

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Enredo de "Ruínas Vivas"
Personagens: Miguelito, Chico Santos, Ayres, Cel. Paulino Saraiva, Anilho, Rita, Carmem.
Miguelito é neto de Chico Santos e cresce fascinado pelas histórias do avô, histórias de guerras e feitos heroicos. Entretanto, sua época não lhe permite seguir os passos do avô. Rebelde, Miguelito acaba expulso da fazenda do Cel. Paulino Saraiva, que ele ignora ser seu avô paterno. Em suas andanças, arranja amigos, como Ayres, e inimigos, como Anilho, ao qual ele assassina depois de ele agredir Rita e Carmem, mulheres do coração de Miguelito. No final, Miguelito vê esvanecer seus sonhos de heroísmo e vê-se reduzido à condição de assassino e fugitivo.



Revista Verbo, número 1, Jan/Fev/Março de 1994.



Nota do autor: na época da publicação da revista, o livro "Ruínas Vivas" ainda não tinha sido reeditado.

 
Landro Oviedo
Enviado por Landro Oviedo em 10/03/2012
Alterado em 14/08/2020
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