Em seu mais recente lançamento, “A fala de Adão”, o patrono da 61ª Feira do Livro de Porto Alegre, Dilan Camargo, incluiu o poema “Essas mulheres”. Vamos ouvi-lo:
Me agradam
essas mulheres de rostos fortes
com seus olhos desmedidos
suas frontes talhadas
pelo espanto da raça.
Sim, me agradam essa mulheres
quando flertam
soltam labaredas
quando falam
e pronunciam melodias cheias de segredos.
Me encanta o enigma
de onde nascem todas as manhãs.
O texto é um tributo à mulher, a quem todas as homenagens são pífias diante da imensidão do que aportam à nossa fragilidade e pieguice perante o mistério da vida que só elas podem decifrar. Como disse Vinícius de Morais, “resta essa fidelidade à mulher e ao seu tormento”, o que é quase um imperativo ético, uma razão de viver. No seu conteúdo, o poeta mostra-se inconcluso diante do que vê e intui, como se fora Blau Nunes diante da Teiniaguá.
A par de sua força estética, estruturalmente, o poema não é à espanhola apenas no efeito dos versos começados com minúsculas, mas também no fato de que as orações anafóricas iniciam com o pronome oblíquo “me” (“Me agradam”, “Me encanta”). Essa é uma ousadia do nosso patrono, meu conterrâneo de Itaqui, porque é sabido e consabido que as gramáticas consagradas rezam que não se pode começar uma oração, seja a primeira, seja uma posterior de um período, com pronome oblíquo. Pelos gramáticos mais conceituados, o primeiro verso, por exemplo, deveria ser “Agradam-me”.
Contudo, e aí é que reside a força da literatura e do uso cotidiano da linguagem, que é um organismo vivo e dialético, o mundo das palavras está longe de ser estático, regido por regras canônicas e imutáveis que não mais dialogam com a realidade que lhe deu origem, perfazendo um sentido desidratado pelo dia a dia. Como bem percebeu o Ludwig Wittgenstein das “Investigações filosóficas”, a linguagem traz em si todas as distinções necessárias para sua validação e interpretação, desempregando a lógica formal. Se não fora assim, quando digo que não fiz nada, estaria negando a conduta omissiva e dizendo, portanto, que tive uma ação positiva e fiz alguma coisa. No entanto, se alguém fala e outro compreende algo como comum, a mensagem encontrou sua legitimidade. Neste caso, o receptor vai perceber que o emissor apenas usou de ênfase para reafirmar que nada foi feito por ele. Aqui, fica sim o dito pelo dito.
A língua com sua normatividade sempre encontrou na poesia e na prosa boa parte das suas razões de ser. Quando os poetas e os escritores, em seus ofícios, instauram a estética na escrita, eles o fazem, em geral, retratando seu meio, estabelecendo canais de comunicação com seus leitores. E também são influenciados por eles. Ninguém, salvo honrosas exceções, escreve para ser incompreendido, pelo menos no código. Assim, o poema tem a primazia da representação semântica, vertida em arte. Quando um poeta eleva determinado coloquialismo a um patamar artístico, é porque ele, o registro informal, já não mais merece ser excluído pela confraria letrada.
Não bastasse essa salvaguarda em tela para “Me agrada”, temos que, forçosamente, reconhecer que essa colocação pronominal é uma contribuição brasileira irrefreável para o idioma de Camões, goste-se ou não disso. Está na hora de se resolver esse descompasso. Se a população, de forma esmagadora, prefere a próclise nessas construções, é chegado o momento de enfrentar tal situação e aproximar linguagem e vida. Não se está falando de apreciar o “menas”, mas de dar um desenlace para uma construção linguística que se impôs contra tudo e contra todos. Ou talvez nem tão contra assim, uma vez que está na língua, nos dialetos e nos idioletos. Dilan Camargo não fez tal próclise sozinho. Fez com milhões de brasileiros que falam exatamente igual, eis aí a força de seus versos. Me agrada isso.