BLITZ: PRETEXTO PARA O CINISMO
De uns tempos para cá, o grau de cinismo dos governantes, de vários partidos, atingiu ares nunca dantes navegados. Está muito difícil se defender de um poder público que nada mais é do que um bunker de uma classe dominante voraz para arrecadar, sovina para investir e amiga dileta da corrupção.
Com uma população amedrontada, confusa e de senso crítico muito menor que sua desinformação, fica fácil para governos oportunistas e mistificadores transformarem causas razoáveis em meios de achaque, de apropriação indevida de recursos e sequestro da boa-fé dos incautos.
Não é de hoje que essa tendência vem crescendo. Para ficarmos em alguns exemplos, vamos ver o caso do desarmamento da população. Foi uma política efetivada pelo governo Lula em conluio com os partidos tradicionais. A cantilena era que as mortes diminuiriam com a retirada das armas. O resultado está aí, trágico, com pessoas sendo mortas pela bandidagem sob o estímulo da presunção de que elas estão desarmadas por cumprirem a lei. Nas áreas rurais então, deu-se uma verdadeira licença para matar, estuprar e roubar, muitas vezes com tortura prévia indeterminada, acobertada pela pouca acessibilidade a esses locais. Para coroar essa insanidade, o Senado aprovou uma proposta que proíbe o porte de facas e canivetes. Ou seja, aos bandidos, tudo; aos cidadãos, o salve-se quem puder. A autodefesa do trabalhador, diante de uma segurança pública fictícia, foi golpeada fatalmente. Até o Psol entrou nessa.
Em continuidade a essa política, cada vez mais se multiplicam normas para tutelar os cidadãos, transformando sua esfera privada em seara sob a discricionariedade dos governantes de plantão. Em cidades como Passo Fundo e Porto Alegre, dois vereadores apresentaram projetos de lei para proibir que as pessoas possam beber em praça pública como forma de incrementar a segurança pública. Sabe aquele churrasquinho dominical da gare ou do Gasômetro? Melou! A prefeitura de Gravataí acaba de aprovar uma lei que proíbe festas da juventude alegando que nelas se cometem delitos. Ora, isso não é intrínseco ao evento e a criminalização em geral é coisa de reacionários, que pensam que sua tutela é um meio de resolver o caos que eles mesmos criaram com suas medidas elitistas e aprofundadoras das disparidades sociais. Não seria mais eficiente adotar o toque de recolher? Todo mundo em suas casas, só saindo pra comprar comida! A Constituição é um mero detalhe que destoa das boas intenções dessas mentes insossas.
Mas se há uma área em que a desfaçatez foi adotada como política oficial, essa área é a do trânsito, que passou a ser a melhor forma de carrear recursos para o caixa único e assim sustentar a farra dos privilégios e realizar o repasse de verbas dos mais pobres para os mais ricos, via pagamento da dívida pública (são R$ 500 bilhões por ano só de juros e Temer quer tirar da Previdência R$ 600 bilhões em dez anos). Se o IR, IPTU e IPVA, por exemplo, têm declarações e fatos geradores anuais, nesse segmento o dinheiro entra toda hora. E sob o argumento de causa justa. Disfarce perfeito. (“Tem que manter isso, viu?”)
Aqui não se trata de defender os motoristas brasileiros, que são, efetivamente despreparados, mas de se contrapor a uma criminalização geral, independentemente de condutas e de danos, como é o caso da Lei Seca. Isso de punir uma conduta por antecipação é próprio dos regimes ditatoriais. E não pode retirar o direito de não produzir prova contra si mesmo, como estão fazendo com normas draconianas e pecuniárias, afrontando não a Constituição Federal, mas o Pacto de São José da Costa Rica, que tem status constitucional e dessa forma ingressa no ordenamento jurídico. Assim como no caso do desarmamento, essas normas só têm gerado arrecadação, mas não têm impedido as mortes no trânsito, que só aumentam. E por quê?
Trata-se de um caso de terceirização de responsabilidades. O grande número de mortes nas estradas tem a ver com a corrupção originária já do regime militar e mantida nos governos posteriores, com medidas paliativas e estratégias de avestruz para enfrentar a questão. Tudo começa com o sucateamento das ferrovias e continua com a transformação das rodovias em verdadeiros globos da morte.
Com o golpe de 64 tendo como um dos financiadores o setor automobilístico, era necessário, após o butim, pagar a fatura. O regime militar pagou abrindo as portas para as multinacionais e desativando as ferrovias, essenciais para o desenvolvimento de qualquer país civilizado. Com isso, as estradas ficaram lotadas de veículos para transporte de passageiros e de cargas. Vejam bem, cargas e passageiros nas mesmas vias, sem duplicações nem acostamentos. Que receita perigosa e lucrativa!
A partir de então, num quadro agravado pela falta de fiscalização e inexistência ou desativação de postos de pesagens, os caminhões passaram a fazer parte da malha rodoviária e das estatísticas trágicas das mortes nas estradas brasileiras. Estima-se que de 30% a 40% desses óbitos tenham caminhões envolvidos. Considere-se que os veículos leves não são tão letais, mas também causam mortes e incapacidades temporárias ou permanentes, mas, principalmente, considere-se que as pessoas hoje em dia não têm outra opção para deslocamentos longos senão as estradas, uma vez que o transporte de passageiros por via férrea, uma modalidade segura, já faz parte de um tempo em que nossos avós eram infantes. Será que com ferrovias e até mesmo hidrovias em pleno funcionamento muitas tragédias não seriam evitadas, vidas perdidas não seriam salvas? Mas isso não entra nas cogitações dos governos porque é preciso vender mais e mais veículos. Tanto é assim que o governo do PT deu isenções generosas para as montadoras.
Com um trânsito caótico criado pelo próprio governo, surge então a chance de aumentar a arrecadação aproveitando os problemas de gestão para vender soluções. E a mágica passa por considerar todo motorista como um criminoso em potencial, que deve ser perseguido e punido e principalmente assoberbado por boletos e cobranças que vão gerar montantes para financiar a corrupção, como é o caso do Detran-RS, que na gestão da enrolada Yeda Crusius, personagem da Lava Jato, tem um rolo de R$ 40 milhões de desvio. Dados da ONU, depoimento de especialistas, estimativas falsas, estatísticas deturpadas, tudo é usado para aprovar leis duras que, no fundo, não resolvem nada porque passam ao largo das questões fundamentais. O centro é criminalizar para arrecadar e é por isso que os crimes de mera conduta, aqueles que não dependem de um resultado, estão cada vez mais engrossando a legislação penal. Enquanto isso, o crime de corrupção não é considerado hediondo. Por que será? Ele não mata mais que o latrocínio do bandido comum? Dois pesos, trezentas medidas.
As blitze são um reflexo institucional da hipocrisia. Criou-se um jogo de gato e rato que a população joga com as ferramentas de que dispõe. Para isso, criou grupos nas redes sociais para exercer seu direito constitucional de informação. A inconformidade diante da percepção de que o poder público professa interesses inconfensáveis, aí incluídos o objetivo arrecadatório e a falta de ação sobre as causas reais, levou a que milhares e milhares se organizassem para resistir às investidas dos órgãos de trânsito e dos seus governos. E é essa ação de resistência que está ameaçada por indiciamentos, denúncias criminais e ações penais, tudo para dobrar a legítima ação dos cidadãos que se valem dos seus instrumentos disponíveis para resistir ao arbítrio. O viés pró-arrecadação é tanto que no governo Dilma Rousseff os policiais da PRF ameaçaram parar de multar e foram prontamente atendidos em suas reivindicações salariais, privilégio que os demais servidores públicos não tiveram.
Em Goiás, houve uma tentativa de criminalizar o direito de informar onde estão as blitze de aluguel. Entretanto, lá não vingou porque o Ministério Público Federal (MPF) não endossou a tentativa sob o argumento de que os internautas estão exercendo seu direito constitucional de informação. No STF, tramita uma Adin sobre a inconstitucionalidade da Lei Seca, que está parada há muitos anos porque não interessa votar. Afinal, se vingar seu evidente desacordo com a Lei “Maior”, muitos interesses serão contrariados. Se for mantida, será uma fenda vergonhosa no ordenamento jurídico, uma vez que o país é signatário de um tratado que reprova o escopo dessa lei da indústria da multa.
Muitas pessoas de boa índole, que acreditam em boas intenções de gente ruim, defendem que as blitze têm objetivos nobres. Elas podem até ter resultados pontuais positivos, como recuperar um carro roubado ou impedir um sequestro-relâmpago. Mas se não tivesse isso eventualmente, elas seriam indefensáveis. Entretanto, elas estão no marco geral de uma política de gerar verbas para o caixa único e financiar os nababos do poder, além de dar uma falsa ideia de atividade em prol da coletividade, quando, na verdade, está tutelando-a para mostrar quem é que manda. Manda quem faz a norma, como a que isenta o agronegócio de pagar tributos.
O Brasil tem uma das piores distribuições de renda do mundo, índices vergonhosos de desempenho educacional, uma das maiores cargas tributárias do mundo, hoje em torno de 33% (e pensar que Tiradentes foi enforcado por resistir a um confisco de 20%, o famoso “quinto dos infernos"), uma corrupção nada republicana, em metástese, anomalias como pensões para ex-governadores e cargos vitalícios polpudos com dinheiro público, entre outras chagas persistentes. Entre as intenções e os discursos dos donos do poder medeia um oceano de dissimulações. Tudo, absolutamente tudo, está montado para dar continuidade a este lamentável de estado de coisas. Inclusive as blitze, não obstante vozes oficiais e oficiosas em sentido contrário.
(A todos os que chegaram até aqui neste artigo, obrigado pela paciência, concordância ou discordância, e um feliz 2018.)