“GAÚCHOS E BEDUÍNOS”: OS 40 ANOS DE UM CLÁSSICO (agora 70)
Para muitos historiadores, o quase milenar episódio da ocupação muçulmana teria sido apenas um longo período de dominação militar sobre a Península Ibérica. “Gaúchos e Beduínos” afirma que esse envolvimento foi intenso. O florescimento cultural, político e econômico da península durante a ocupação ela o deve aos conquistadores. Deve a eles também toda uma gama de influências e conhecimentos que sobreviveria e se incorporaria à alma peninsular, mesmo após a restauração do império cristão.
Na medida em que estas influências existem de forma manifesta, Manoelito de Ornellas se habilita a sua empreitada mais ousada: provar que elas se transmitiram ao gaúcho por meio do colonizador ibero.
Sem dúvida, a perspectiva adotada pelo autor é procedente. Ora, se um povo sofre quase milenar ocupação do seu território, ao retomar essa terra, todo um entrelaçamento cultural jamais poderá ser apagado.
Assim como essas influências não mais serão apagadas, elas serão transmitidas. O gaúcho sul-americano, criado na confluência entre o Rio Grande, o Uruguai e a Argentina, é herdeiro de um legado cultural e histórico de alcance imensurável.
Traçando uma analogia entre o gaúcho e o beduíno, Manoelito de Ornellas aponta uma série de elementos que os aproximam. Seja na aparência, pelo uso de certas partes do vestuário e com ênfase nas cores fortes; na alegria da dança ou da música, na paixão pela equitação; seja no apego à vida nômade do deserto ou dos campos; no fatalismo do gaúcho, que mina a ideia cristã de um deus absoluto a intervir na ordem das coisas; na psicologia solitária de ambos frente ao firmamento; na superstição que impera num e noutro, na linguagem do gaúcho; é claramente perceptível quanto eles têm em comum. É nesta comparação que o beduíno assume a imagem de um gaúcho no deserto e o gaúcho, por sua vez, revive a milenar figura do beduíno ao percorrer o pampa. Polêmica
Em que pese o aprofundamento do autor em relação ao seu tema, historiadores tradicionais deturparam o conteúdo da obra e o acusaram de atestar uma descendência direta dos árabes. Por que surge tal acusação?
Para se responder a tal indagação, deve-se ter presente o novo momento da historiografia do RS a partir da década de 20, determinado pelo processo político e econômico em curso no país.
Marlene Almeida, em dissertação de mestrado, flagra esse momento da falência de um projeto separatista. A inexistência de um produto alternativo, capaz de sustentar a nova província, e o novo detalhamento das relações econômicas no Brasil que se industrializava não só relegaram as teses separatistas como também reordenaram o conteúdo da produção historiográfica gaúcha. A ênfase passou a ser dada à vocação nacionalista do Rio Grande como forma de melhor integrá-lo à vida e ao mercado nacionais.
A relação entre este contexto e o livro em questão passa por perceber o obstáculo representado por um livro que atualiza todas as raízes históricas e sociológicas dos rio-grandenses, eliminando divisões geográficas num momento em que nossos historiadores empreendem seus esforços para no sentido de afirmar a lusitanidade do Rio Grande. O abandono total do discurso separatista e sua troca por um outro de integração nacional remetem para uma nova abordagem de nossa evolução histórica e das relações políticas com o Uruguai e a Argentina. Redefinindo o espaço geográfico é preciso redefinir também a psicologia do homem que o habita.
Manoelito de Ornellas, ao afirmar a origem comum do gaúcho sul-americano, conscientemente ou não, vai de encontro a esta visão. Ao apontar variantes árabes, ibéricas, indígenas, ele reduz a influência estritamente lusitana na formação do gaúcho. É precisamente isso que causa embaraços aos historiadores tradicionais.
Na passagem dos 40 anos de “Gaúchos e Beduínos” fica uma certeza: é necessário redescobri-lo e assim constatar que a América Latina não é um mero acaso, mas fruto de uma longa história em comum e que tão bem “Gaúchos e Beduínos” ajuda a resgatar e compreender.
Publicado originariamente no Jornal RS em 1º e 2 de outubro de 1988 por ocasião da passagem dos 40 anos da obra e ora republicado em registro à passagem dos 70 anos de sua publicação em 1948, ano emblemático para a cultura gaúcha.