O ITAQUIENSE AVIADOR QUE RESISTIU À DITADURA MILITAR
"Matam meu corpo, porém minha alma é livre, tenho minha consciência tranquila porque morro no cumprimento do dever." (tenente-coronel Alfeu de Alcântara Monteiro)
Quando o muito ideológico nacional-fascista e pouco ilustrado presidente Jair Bolsonaro acusou o brigadeiro chileno Alberto Bachelet, pai da ex-presidente Michelle Bachelet, de estar envolvido numa conspiração comunista para tomar o poder, além das imputações falsas, ele mostrou mais uma vez que seu nacionalismo é de uma ordem subalterna, menor, despicienda. Os verdadeiros militares patriotas e nacionalistas são os que perderam a guerra para uma direita verde-oliva submissa aos interesses estrangeiros. No Chile, Augusto Pinochet estava a serviço de uma contrarrevolução dirigida pelos Estados Unidos. No Brasil e em diversos países do continente, ocorreu a mesma coisa. As perdas foram imensas e, no próprio Chile, Bachelet foi torturado e perdeu suas divisas. O cantor Victor Jara perdeu suas mãos, decepadas no Estádio Chile. Todavia, eles não perderam sua dignidade. Não foram casos isolados de resistência. E um conterrâneo meu, de Itaqui, no garrão do Brasil, também fez parte dessa luta. Pagou com a vida, mas não lhe tiraram a coragem e a valentia de morrer por suas convicções.
Se formos buscar um pouco atrás as raízes desta narrativa, elas estão na Campanha da Legalidade, liderada por Leonel Brizola, que tinha como meta a posse de João Goulart logo após a renúncia do folclórico e irresponsável Jânio Quadros em agosto de 1961. O golpe militar, sob o comando do governo norte-americano, que havia sido impedido pela comoção popular pelo suicídio de Getúlio Vargas em 1954, voltou à tona nesse ano. Todavia, por uma onda de rebeldia nacional iniciada pelos gaúchos, o projeto de golpe fracassou e o comandante do terceiro exército, Machado Lopes, houve por bem ficar ao lado da população e da ordem constitucional vigente. Durante vários dias, foram muitas as mobilizações populares para barrar o regime das baionetas. Entre esses acontecimentos, um deles foi marcante.
Durante os embates anteriores à pacificação, os militares golpistas deram uma ordem para que os aviões da base aérea de Canoas bombardeassem o Palácio Piratini. Isso só não se concretizou pela revolta dos sargentos e demais praças e pelo apoio decisivo que receberam do tenente-coronel Alfeu de Alcântara Monteiro, então subcomandante, que impediram a decolagem dos aviões de bombardeio. Essa rebelião foi essencial para alterar a correlação de forças e o golpe ficou novamente adiado. Mas os golpistas estavam decididos a consolidar sua obra antidemocrática.
Com sua atitude firme e patriótica a favor da ordem constitucional, o tenente-coronel Alfeu ficou “marcado na paleta”, como se diz no Rio Grande do Sul. Seus inimigos arrivistas jamais o perdoariam por sua postura independente e corajosa. As trevas do ódio são latentes, estão lá sem serem vistas, esperando a oportunidade de emergir. Essa oportunidade de vingança viria por ocasião do golpe militar de 1º. de abril de 1964 e seria uma triste página rabiscada com o sangue de um bravo.
E o tempo para esse malfadado ajuste de contas não demoraria. No dia 4 de abril, por volta das 21h, o novo comandante do 5º Comar, major Nélson Freire Lavanere-Wanderley, em Canoas, tendo recebido ordens para prender todos os que se haviam rebelado em 1961, recebe na sala do comando o coronel Alfeu para lhe dar ordem de prisão. Para presenciar o fato, convoca o coronel aviador José Paulo Pereira Pinto e o coronel Leonardo Teixeira Collares. Ao saber da determinação ilegal e injusta, o coronel Alfeu aponta sua arma pessoal, calibre 32, para o comandante Wanderley, afirmando que nem ele nem o novo governo tinham legitimidade. Exigia que fosse revogada a ordem de prisão. Nesse momento, quando ia se retirando de costas, aparece o coronel Hipólito da Costa e o alveja com dois tiros de uma pistola 45 pelas costas. Ao cair, ele dispara a esmo e atinge o comandante Wanderley de raspão na cabeça. A investigação oficial apontaria que o coronel Hipólito da Costa o teria alvejado depois de o coronel Alfeu alvejar o comandante. Ora, exímio atirador como era, jamais teria errado o tiro de tão perto.
O Inquérito Policial Militar (IPM) aberto para apurar os fatos foi uma verdadeira farsa. Absolveu o assassino e condenou… o coronel Alfeu. Claro que isso, nos dias de hoje, não causa espécie quando sabemos que diversas outras encenações foram montadas no regime militar, como a da morte do jornalista Vladimir Herzog ou a da tentativa de estourar bombas no Rio-Centro para culpar os sindicalistas.
O coronel Alfeu foi a primeira vítima no Rio Grande do Sul de um regime cruel e que gerou centenas de mortos e de desaparecidos. Trazia em sua personalidade aquele jeito franco e gaúcho de ser, de não se dobrar para os poderosos, de cumprir fielmente seu juramento de servir às leis e à legalidade, algo que para os golpistas costuma ser mera formalidade com suas constituições outorgadas. Não é desarrazoado supor que em sua psicologia de homem de fronteira estivesse o peso da palavra empenhada, do compromisso assumido. A tirania que se avizinhava não poderia tolerar sua independência de princípios e a mentalidade livre e incorruptível. Foi com tal escopo que o tenente-coronel Alfeu de Alcântara Monteiro partiu de alma livre, deixando um legado que desiguala vidas. As de seus algozes são notas de rodapé. A sua, um exemplo de que não vale a pena viver sem ser fiel a si mesmo e aos seus valores. Até sempre, coronel Alfeu!